A Whipala arde no fogo, mas ressurge por entre as cinzas

Uma jovem  boliviana nestes dias me perguntou:

– Por que queimaram nossa bandeira Wiphala?

whipala A Whipala é uma bandeira de sete cores dos povos andinos, hoje, representa majoritariamente o povo Aimara. Sem dúvida, quem faz isso busca a destruição, tal como no Brasil, quem colocou fogo no cerrado e na Amazônia buscava destruir a floresta.

Nas chamas do fogo, tudo rapidamente pode virar cinzas, uma casa, um Palácio, uma vida. O fogo tem grande poder destrutivo da matéria, é rápido, voraz, visível, contudo não tem poder sobre as ideias, não elimina a verdade. No início do século XVI, Galileu Galilei que viu Giordano Bruno arder na fogueira condenado pela inquisição, também sob inquérito por defender que a terra era redonda e girava em torno ao sol, voltou atrás para não  ter o mesmo destino de Bruno, mas suas ideias foram reconhecidas e ele fez história nos anais da ciência.

Nas Américas, de norte a sul, muitos grupos nativos, há 5 séculos já experimentaram inúmeras formas de destruição, seja pelas armas, pelas doenças ou pela imposição de uma religião. No século XVI, a igreja católica decidiu que os índios tinham alma, então deveriam ser catequisados e trabalhar para pagar sua catequese. De lá para cá, os estados nacionais também realizaram estragos com suas politicas assimilacionistas. No século XX, outros grupos se encarregaram de levar o evangelho para dizimar pensamentos e formas de vida das comunidades dos andes ou das floresta.

Quem busca matar ideias pelo fogo não só tem raiva do pensamento como não entende nada do simbolismo do fogo. O fogo, faz um caminho para o alto, eleva. Assusta pela velocidade, tem vontade própria, as chamas podem escapar do nosso controle,  tal como as paixões que podem tomar o sujeito, incendiá-lo, deixá-lo fora de si. O amor é um fogo que arde sem  se ver, já cantaram os salmos e os poetas; a ira, a culpa também incendeiam, pois são paixões no sentido etimológico da palavra, ou seja, trazem padecimento e adoecem o sujeito.

Há pessoas e grupos que buscam a destruição do outro ou daquilo que tem medo ou raiva, na sua soberba ou ignorância, querem tirar a existência do que não entendem ou cuja existência ameaça, porque o diferente ousa expor irreverentemente que há outros jeitos, outras cores, outros amores, outras paragens, outros pensamentos.

O século XX colocou isso em pauta, todos os grupos têm só direitos não a ter direitos, mas a existir e a decidir, bem como as pessoas, homens e mulheres podem não querer um casamento, um beijo ou uma cantada, já não  se legitimam projetos assimilacionistas ou genocídios em nome de qualquer supremacia. Muito embora, hoje, neste retorno obscurantista que nos acompanha no Brasil e por todo o globo se perceba como está difícil de manter estas conquistas.

O rei Arthur e a távola redonda, diálogo e civilidade para o século XXI

Das lendas medievais, talvez as mais conhecidas sejam as histórias do rei Arthur com seus cavaleiros que lutam para proteger o reino da Britânia de invasões e de toda sorte de quimeras e dragões.

Merlin, o mago, acompanha Arthur desde seu nascimento, auxiliando-o a recuperar a Excalibur, a poderosa espada; para encerrar o tempo de violentas guerras e assim iniciar um novo ciclo pautado pela paz, o velho sábio idealiza uma mesa sem cabeceira para que nenhum cavalheiro disputasse o comando. Por sua vez, o Rei Arthur ordenou os mais bravos combatentes como cavaleiros, sentando-os frente a frente na távola, promovendo uma mudança de grau na vida política de seu reino, a saber, a passagem das armas à política: nada fácil para guerreiros. A civilidade dá trabalho.

A mesa redonda instituiu e simboliza uma igualdade entre os membros; sentar-se à mesa significa ingressar em espaço onde é possível ver e ser visto, ouvir e ser ouvido, apontando o reconhecimento daquele que lá está. Aqui encontramos duas dimensões, a instância do reconhecimento e do diálogo.

Esta fábula remete às condições de civilidade para a construção de um mundo comum, uma noção cara à filósofa Hannah Arendt. De origem judaica, autora viveu grande parte de sua vida como refugiada apátrida fugindo do nazismo, talvez por isso seu pensamento dedique importância ao tema.

“Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens” observa Hannah Arendt, a mesa torna-se um artefato que congrega e ao mesmo tempo evita a colisão. Trata-se de um artifício resultado de um esforço comum das partes.

Para a autora, “todas as ações políticas na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são realmente realizadas por meio de palavras”, a política configura-se como um espaço do diálogo com os outros com os quais devo chegar a um acordo, isto requer doses gigantescas de civilidade para a contenção do nosso mal-estar quando não concordam conosco. É bem fácil –e primitivo- pegar alguém pelo pescoço quando a raiva toma conta, em contrapartida, o uso das palavras requer um árduo treinamento, é para poucos mostrar o desacordo e até mesmo ofender sem empregar xingamentos.

A partilha de um espaço nos possibilita viver no mesmo mundo, mesmo que o enxerguemos sob diferentes prismas. Quem não se senta à mesa não obtém reconhecimento; sua palavra não é ouvida, suas demandas não entram na agenda e, de certa forma, não têm existência. Ao longo da história, pouquíssimos fizeram parte da távola redonda, os pobres, as mulheres, as populações indígenas, quilombolas, entre inúmeros outros grupos ficaram e, alguns ainda ficam, de fora, com trágicas conseqüências.

As palavras de Hannah Arendt alertam para a necessidade de um mundo comum e nos instigam a refletir sobre as características de nossa távola, esse artifício necessário da política.

ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

_____ Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001

tavola redonda
Evrard d’Espinques, século XV