À procura de um herói

Num destes domingos, em uma reunião de amigos em um sitio, muitas crianças de diversas idades se divertiam ao sol. Em dado momento Anita, menina doce de 7 anos, de cabelos encaracolados, entrou na sala chorando com a mão no braço, se dirigindo à primeira pessoa adulta que encontrou, no caso, era a tia Paula, contou que estava brincando na casinha de madeira com sua amiga, Clara, as duas queriam ficar sozinhas, sem os meninos, só que os meninos insistiram e entraram, ela tentou barrar a entrada e o Artur, um menino da mesma idade, a empurrou com um tapa no braço.

– Ele me bateu! Dizia soluçando.

Ela não tinha nenhum arranhão no braço, mas a tia Paula, após prestar atenção lhe disse:

– Ninguém pode te bater! Se alguém ameaçar, você olha bem no seu olho e diz: você não me bate! Fale firme.

A menina procurou argumentar, “mas ele me bateu… eles queriam entrar na casa, a gente não quer…” E voltou ao choro.

– Anita, não adianta chorar! Você tem que aprender a se defender, ninguém pode te bater!

– Mas…

A criança esperava que o adulto resolvesse seus problemas. Esse é um  legítimo desejo infantil, ao pai cabe cuidar da proteção e ele tem autoridade para determinar o que pode ou não ser feito principalmente pelos pequenos.  O crescimento, contudo, coloca  o desafio do amadurecimento, isto implica que, paulatinamente, cada um conquiste autonomia, aprenda a conviver entre pares e, quando necessário, saiba se defender.

Muitas pessoas crescem sem se dar conta desta exigência do crescimento, sem entender que cada um precisa resolver os seus problemas, persistindo o desejo de que tudo se resolva num passe de mágica, sem que o sujeito tenha que agir. Continua existindo o desejo de que alguém venha resolver os problemas, um herói, um salvador. Ele colocará ordem no pedaço! A velha figura do pai -agora com outra roupagem- que me ajude contra os monstros que insistem em me assolar…

Cada época tem seus monstros e vilões: o desemprego, a corrupção, o pobre, a carestia o era em outros tempos. E em cada época aparecem aqueles que desejando poder se arvoram a salvadores da pátria.

A idade chega, mas muitos adultos continuam com esse desejo infantil, não raro escondido bem por dentro da fantasia de super herói.

*

Anita deixou a Paula falando sozinha e logo a seguir soluçava contando sua história para a tia Márcia, com certeza, ela seria mais sensível ao seu choro.

Crescer dá trabalho…

O estranho desejo da paz das trincheiras

Nas últimas semanas um lado conservador da sociedade tem ganhado destaque, um discurso defensor de uma família patriarcal, excluindo a legitimidade de novas possibilidades de sexualidade, o direito da mulher ao seu corpo e a ganhar salários iguais aos homens, o direito das populações nativas às suas terras, entre outras pérolas. Um discurso que já estava presente no congresso, mas que não chegava às ruas declaradamente, nas últimas semanas aparece ostensivamente ocupando palanques, whatsapps e portas do banheiro.

Há muitas leituras possíveis, escolho uma delas.

Neste mundo em movimento, para muitos a segurança dos usos e costumes ancorados em uma tradição ou na palavra sagrada passa a conflitar com a evidência de que há outros saberes, outros modos de vida e outras respostas para os desafios da vida. O terreno secularmente estável começa a ruir.

Essas transformações são sentidas como uma ameaça pelos setores que sempre estiveram no poder, principalmente o velho patriarcado que responsabiliza o “outro” pelos problemas, no caso, as mulheres, os gays, os migrantes e todas as minorias que conquistaram algum reconhecimento. Assim as próprias inconsistências não são enfrentadas, mas escurecidas, qualquer reflexão divergente será desqualificada ou vista como heresia ou blasfêmia e pouco espaço há para tecer confluências e soluções criativas.

Toda intolerância, seja religiosa, política, étnica, entre outras, reflete um profundo medo; na chave do medo, somente se estaria a salvo quando o mundo ficar reduzido ao “meu” grupo ou clã, quando todos os “outros” forem subjugados ou exterminados, uma vez que sua existência compromete a forma e a verdade que se construiu.

O desafio para o século XXI é conviver com o outro, aceitando e respeitando a diferença, de modo que ela, ou melhor, outras singularidades, não gerem vontade de poder ou domínio, nem desperte um medo a ponto de levar a pensar ou mesmo propagar o seu aniquilamento. A vida não corre nas trincheiras, mas no contínuo desafio que provoca em cada pessoa e/ou grupo para mostrar seu espírito criativo  e aquilo que traz de melhor.

tumblr_static_filename_2048_v2A chave para a convivência não é a paz do cemitério. E a saída do tsunami não é clamar pela autoridade do pai (ou do capitão) para resolver os problemas é enfrentar respeitosamente o dissenso, em diálogo criativo com o “outro”, porque o outro -em outra perspectiva- também sou “eu”.

A eclipse da razão ou o atuar das vísceras

Março de 2003

Certa noite, em uma sala de aula de um renomado curso universitário de São Paulo, um aluno se lamenta:

– O mundo está ficando muito chato, não se pode mais fazer piada de negro, não se pode falar mais no trânsito “dona Maria volta pra cozinha!”, não se pode falar mais gordo, anão, bicha. Nada pode! A vida tá ficando um inferno com esse tal do politicamente correto! Não dá pra rir de nada!

Ele, certamente, exprimia um mal-estar frente a um mundo cujas novas pautas ele não reconhecia e o seu lugar na hierarquia não estava mais garantido como estivera o do seus pais, avôs e toda sua linhagem. O lugar de poder que estabelece quem faz parte do nosso grupo e qual é o lugar do outro; determina de quem vai se rir, a quem vai se enxovalhar ou até mesmo se excluir. O milenar padrão cultural patriarcal fora questionado.

Outubro de 2018

Uma jovem é marcada a canivete com uma suástica em sua barriga por sair vestindo uma camiseta com dizeres que três homens que passavam pela rua não gostaram. O delegado que investiga o caso afirma que se trata do antigo símbolo budista do paz e amor. Trágico perceber que as feras estão à solta. È legítimo o não gostar de qualquer coisa, não a agressão.

A hiperbólica hostilidade de nossa conjuntura atual expõe que o mal-estar de outrora talvez tenha se tornado patologia. Ninguém se constrange da própria violência e o desavergonhadamente politicamente incorreto dá audiência e votos.

A irracionalidade reinante expõe uma resposta emocional. Pela teoria dos complexos de Jung sabemos que o tom emocional de um complexo costuma indicar onde radica sua patologia e qual é a ferida forjada na história pessoal e, certamente, hoje, coletiva. No tecido social, há uma ferida lancinante  demandando a cada um olhar e reconhecimento.

A quem se dirige a hostilidade? Às mulheres, às diferentes formas da sexualidade, aos negros, aos pobres; em suma, a todos os setores que revolucionaram padrões sociais e culturais no século XX. Dirige-se a uma multiplicidade de formas de existência que conquistaram visibilidade.

Muito embora as pessoas não se dêem conta, a violência não é superioridade, ela expõe o medo. O medo faz atuar com as vísceras, não com a razão. Medo do quê?

Medo do outro, do diferente; o sujeito imagina, defensiva e ilusoriamente, que para se sentir em segurança o outro deve ser reduzido ao mesmo, devendo ser dominado, calado, apaziguado, nem que seja pela paz dos cemitérios.

Medo daquele que ameaça o meu lugar, mas também medo deste outro que também está em mim mesmo.

E quando as vísceras tomam o lugar da razão, certamente não estamos em boa companhia.