A eclipse da razão ou o atuar das vísceras

Março de 2003

Certa noite, em uma sala de aula de um renomado curso universitário de São Paulo, um aluno se lamenta:

– O mundo está ficando muito chato, não se pode mais fazer piada de negro, não se pode falar mais no trânsito “dona Maria volta pra cozinha!”, não se pode falar mais gordo, anão, bicha. Nada pode! A vida tá ficando um inferno com esse tal do politicamente correto! Não dá pra rir de nada!

Ele, certamente, exprimia um mal-estar frente a um mundo cujas novas pautas ele não reconhecia e o seu lugar na hierarquia não estava mais garantido como estivera o do seus pais, avôs e toda sua linhagem. O lugar de poder que estabelece quem faz parte do nosso grupo e qual é o lugar do outro; determina de quem vai se rir, a quem vai se enxovalhar ou até mesmo se excluir. O milenar padrão cultural patriarcal fora questionado.

Outubro de 2018

Uma jovem é marcada a canivete com uma suástica em sua barriga por sair vestindo uma camiseta com dizeres que três homens que passavam pela rua não gostaram. O delegado que investiga o caso afirma que se trata do antigo símbolo budista do paz e amor. Trágico perceber que as feras estão à solta. È legítimo o não gostar de qualquer coisa, não a agressão.

A hiperbólica hostilidade de nossa conjuntura atual expõe que o mal-estar de outrora talvez tenha se tornado patologia. Ninguém se constrange da própria violência e o desavergonhadamente politicamente incorreto dá audiência e votos.

A irracionalidade reinante expõe uma resposta emocional. Pela teoria dos complexos de Jung sabemos que o tom emocional de um complexo costuma indicar onde radica sua patologia e qual é a ferida forjada na história pessoal e, certamente, hoje, coletiva. No tecido social, há uma ferida lancinante  demandando a cada um olhar e reconhecimento.

A quem se dirige a hostilidade? Às mulheres, às diferentes formas da sexualidade, aos negros, aos pobres; em suma, a todos os setores que revolucionaram padrões sociais e culturais no século XX. Dirige-se a uma multiplicidade de formas de existência que conquistaram visibilidade.

Muito embora as pessoas não se dêem conta, a violência não é superioridade, ela expõe o medo. O medo faz atuar com as vísceras, não com a razão. Medo do quê?

Medo do outro, do diferente; o sujeito imagina, defensiva e ilusoriamente, que para se sentir em segurança o outro deve ser reduzido ao mesmo, devendo ser dominado, calado, apaziguado, nem que seja pela paz dos cemitérios.

Medo daquele que ameaça o meu lugar, mas também medo deste outro que também está em mim mesmo.

E quando as vísceras tomam o lugar da razão, certamente não estamos em boa companhia.

Autor: Verónica

Psicóloga, escritora, doutora em Sociologia. Professora e sempre aprendiz.

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